Blecaute



Quando já iam se levantar, para driblar as inconveniências, a luz apagou-se. O bairro todo, ao menos era o que parecia, tinha ficado sem uma gota de luz. Ele riscou um fósforo, os rostos se iluminaram, palhas ao vento, as velas se acenderam na sala de estar, os dois sorriram cúmplices, captando o que havia de fortuito e inesperado na cena, pareciam um casal de muitos anos, uma mesa e algumas velas, a intimidade formada, ninguém para os repreender, a noite e a chuva lá fora, as casas apagadas, beijaram-se.

Quase como crianças, aproveitavam as chamas da vela para inventar pequenos jogos, as mãos gerando sombras por entre as paredes ou criando movimentos por entre as chamas, os dois, íntimos, esquecidos do dia, ninguém para os censurar, a cidade adormecida, a chuva lá fora, os corpos próximos, aproveitavam o tempo e seus retornos, a luz elétrica ainda não tinha sido inventada, e os homens se reconheciam em torno do calor intenso e circunscrito dos objetos de fogo.

Estrondo, a luz retornou, entreolharam-se severos e assustados, novamente lúcidos, as casas lá fora como milhares de olhos, a cidade de volta, corpo vivo. Ela encontrava-se ressentida, ainda guardando lembranças do marido. Ele já estava imunizado contra mulheres mal amadas. Ficaram ali, constrangidos, ainda sem saber o que fazer com o que havia sobrado da noite. O tempo se estendia, penetrante, luminoso, numa austeridade implacável.


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