Confissão


Eu era apenas a extensão das terras do meu pai. O milho e a mandioca sempre geraram poucos frutos para a nossa família de sete filhos. Meu pai precisava de mais terras. Ele esperou, durante dez anos de fome e de seca, a terra que o governo não trouxe. Depois, teve que fazer o que era o jeito: segurou no meu corpo e foi me esfarelando, multiplicando a farinha de mandioca através do pouco que eu tinha para oferecer. Tive que virar a raiz da família. Os viajantes se aproximavam e raspavam as minhas partes, para que da minha carne, triturada e moída, fosse retirada a boa farinha de mandioca que sempre alimentou os nossos dias.
No inicio, eu não entendia, os viajantes chegavam de todos os lugares e emendavam o corpo deles no meu, divertidos, eles riam até não mais se acabar. Eles plantavam alguma coisa em mim, e eu sangrava por dentro, ficava marcada com dores e doenças. O meu pai trazia remédios, às vezes mandavam chamar a parteira, botavam pomada, só dava para curar pela metade. Durante uma semana, eu ficava descansando numa rede. Depois, tudo voltava, os homens nunca se escasseavam por essas bandas.
Foi desse jeito que eu cresci, sabendo do divertimento dos homens e das dores das mulheres. Um dia, resolveram que a minha irmã menor deveria ser a minha companheira, aprender comigo, fazer os mesmos serviços. Eu olhava para ela e lembrava de tudo, o corpo dela era como se fosse o meu, ela chorando, não querendo, toda encolhida num canto, sem vontades. Eu tinha que me fazer de forte, professora, mostrar os ensinamentos, a primeira vez doía, mas depois passava, a gente ia se esquecendo de tudo, se acostumando, o tempo ia esfriando as coisas.
Meu pai, ele dizia que só queria o bem pra gente. Dependendo dele, não teria nada disso, eram as necessidades. Era o que ele dizia, mas eu não sei se acreditava, minha irmã tão pobrezinha, feito um bezerrinho aflito, a noite toda se remexendo, lamuriando, aquela dor escondida, o corpo desfeito, aquilo não era certo, nós duas, companheiras, tendo que viver no meio dos homens. Quando amanhecia, vinha aquela vergonha, a mãe não dizia nada, os irmãos olhavam de cara fechada, e tudo era como se não tivesse acontecido, nós duas caladas.
Com o tempo, a gente aprendeu a rir das desgraças, as muitas bebidas, as brincadeiras, os fingimentos, tudo do jeito que tem que ser. De outra forma, quem ia querer dormir com mulher abobada, cheia das frescuras? Ninguém gosta de cara feia, amuada, mazelenta. A vida é essa mesma, é a realidade, o corpo se acostuma. Tudo já está feito, e o melhor é esquecer, não pensar demais, entrar no jogo, zombar das esquisitices, a perequita esfolada, as doidices que cada um inventa, a falta de dinheiro, as safadezas, as putarias, os prazeres, os cansaços, isso é o mundo.
Quando crescemos, o campo foi ficando pequeno pra gente, eu e minha irmã pegamos a estrada, chegamos na capital, entramos nos lugares mal falados: os bordeis, as ruas, as putas. Nos misturamos, encontramos um cantinho pra nos instalar, zombamos, revelemos o nosso corpo, nos exibimos. E todo aquele passado ficou de lado, perdido, carregado, escondido no distrito em que nascemos, no meio dos matos, dos interiores.
Às vezes, tenho até vergonha de dizer...
Às vezes, eu me acabo de tanto chorar.


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