Onde o homem?

Conto publicado pela ed. Moinhos de Vento


Então, viver era aquilo, amar e desamar, querer e não querer, como um terreno incerto, quebradiço? Ninguém, na verdade, sabe onde põe os pés? Ontem, eles ainda eram namorados? Ainda existia um fio tênue que os unia? Um passado? Qualquer coisa? E por que foi que isso tudo desmoronou? Teria existido alguma coisa antes? Quem eram eles?

Fingiam? Amavam? Aprendiam?

Rafael havia decidido acabar com tudo, achava que faltava algo, desejava experiências, tinha vivido muito pouco, não conhecia as mulheres. Seria muito injusto se toda uma vida tivesse que se petrificar para sempre por conta de uma única escolha. Ele era muito jovem, queria ter as mãos livres, não desejava casamento, papel passado, a vida cristalizada.

Imaturidade? Desamor? Incompreensão?

Ele sabia que o tempo passa e exige de nós escolhas definitivas. Sabia que envelhecia, e precisava de alguma coisa mais duradora do que o próprio corpo. Desejava, como todas as pessoas, construir uma estabilidade no mundo, sentimentos verdadeiros onde pudesse repousar a fronte depois de um dia cansativo de trabalho. Sonhava: uma mulher, uma casa, a possibilidade de externar os sentimentos, de vê-los se concretizar num ambiente, numa outra pessoa. Necessitava de alguma coisa capaz de viver fora do corpo, multiplicada nos outros, como um enraizamento.

Medo das raízes? Da imobilidade das árvores? Das decepções?

As escolhas definitivas são um sinal de envelhecimento, elas trazem consigo a negação das possibilidades da juventude. Uma mulher é sempre a ausência de todas as outras. Uma profissão é sempre o desfazer-se de centenas de outras possíveis vocações. Toda escolha tem algo de terrível no seu bojo, uma espécie de negação das possibilidades do mundo, uma cristalização dos homens, o tempo dentro de uma moldura, de uma casca, como uma objetividade que muitas vezes se volta contra aqueles que a conceberam.

Medo do amorfo? Do não objetivo? Da falta de consistência?

Então, o que era que ele queria? Agora que estava sozinho, não estava feliz? E quando estavam juntos, encontrava-se insatisfeito? Seria eternamente assim, como uma balança desregulada, sempre um lado pendendo para que o outro pudesse melhor se completar? Agora que as mãos estão livres é o vazio aquilo que ele sente? Quando as mãos estavam cheias, ele sentia-se preso? Como se lhe roubassem as asas? O que ele pretendia?

Medo de quê? De quem? De si mesmo? Do outro?

O lado esquerdo não se equilibrava com o direito? O que fazer com aquele nada de experiências? Sempre a sensação de não ter vivido o suficiente? Era amor o que lhe faltava? Era a loucura? Era a incapacidade de tentar unir o imponderável? Ou será que ele não era capaz de assumir pra si certas limitações próprias do humano? O que ele queria? O que de fato ele queria?

Onde o homem? Em que pássaros? Em que árvores?

Ele não sabia, não tinha respostas. O que sabia era daquele eterno sentimento de insatisfação. O amor que une um homem e uma mulher: por que ele não era capaz de fazer grandes obras? Por que muitas vezes era tão mesquinho, esse amor? Por que tão circunscrito? Não estaria, nesse amor idealizado, o terreno mais propício para as vaidades humanas, o lugar em que as hipocrisias da sociedade mais se manifestavam? Depois de séculos, os homens não teriam enrijecido o amor? Para controlá-lo? Para submetê-lo? Para domá-lo de uma vez por todas?

Onde o homem? Em que sentimentos? Em que lugares?

O que havia sobrado? Ainda era amor o que havia sobrado? Amor ou fingimento? Amor ou simples conveniência? Haveria terreno para sentimentos verdadeiros? Existiria a possibilidade do amor se expandir e não pertencer apenas ao espaço circunscrito de um casal e seus filhos? Seria amor aquele fechamento do homem burguês, no espaço restrito da casa, consumindo e tentando criar um paraíso artificial para os filhos e netos?

Onde o homem? Onde o amor? Onde a revolta?

Seria possível domesticar o amor? Será que o animal, mesmo quando selado, enjaulado, guardado sob sete chaves e sete capas, mesmo assim ele não preservaria um fundo de revolta? Um relincho? Algumas partes ainda não cobertas? Será que o amor não seria a chave? O lugar de onde toda a revolta haveria de partir? O sonho em que um homem finalmente se encontra? A cura das nossas misérias? A quebra com toda a clausura? O esquecimento? Os retornos? A memória? As revelações?

Onde os sonhos?

Onde o amor?

Onde o homem?




    
     OBS: O inédito volume de contos Onde o homem? ganhou mensão honrosa na categoria ficção (Prêmio Lucilo Varejão), no concurso literário da Prefeitura do Recife (2010). 

Um comentário:

  1. Diogo, obrigadíssima por seu comentário e leitura do meu poema. Um leitor intruso como você é uma honra receber! Daí, já vira convidado, não é mesmo?

    Abraços

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