Janela do caos

1

Tudo se passa
Em Egitos de corredores aéreos
Em galerias sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncel
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2

Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo.
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3

Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras.
Mas na tua alma subsiste

- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.


4

O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.

Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.

Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.


5

Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.

Fome, litoral sem coros,
Duro parto da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.


6

A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:

E talvez já a tivesse entrevisto
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.

Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura,
Última passagem livre.

Só vemos o céu pelo avesso.


7

Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.

Enigma, inocência, bárbara,
Pássaros galopando elementos
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.


8

Que esperam todos?
O vento dos crimes noturnos
Destrói augustas colheitas
Águas ásperas bravias
Fertilizam os cemitérios.
As mães despejam do ventre
Os fantasmas de outra guerra.

Nenhum sinal de aliança
Sobre a mesa aniquilada

Ondas de púrpura
Levantai-vos do homem


9

Penacho da alma,
Antiga tradição futura:
?Se a alma não tem penacho
Resiste ao Destruidor?


10

A velocidade se opõe
À nudez essencial.
Para merecer o rompimento dos selos
É preciso trabalhar a coroa de espinhos.
Senão te abandonam por aí,
Sozinho, com os cadáveres de teus livros.


11

Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano

Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos;
Entre fadiga e prazer.
A bem-aventurança.
Além dos mares, além dos ares,
Desde as origens até o fim,
Além das lutas, embaladores,
Coros serenos de vozes mistas,
De funda esperança e branca harmonia
Subindo vão.



Murilo Mendes
Poesia liberdade (1943-1945)

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